OS PESCADORES
Numa terra de grande tradição piscatória, a comunidade de pescadores da Costa tem, desde os anos 80, a devida homenagem materializada numa escultura.
Aqui podes aprender sobre a obra Os Pescadores e sobre o seu autor, bem como sobre a história da atividade piscatória na Costa da Caparica e as componentes sociais a ela ligadas.
A OBRA
Autor: Jorge Pé-Curto
Inauguração: 4-10-1986
Material: Bronze
Dimensões: c. 2,40m x 1,80m
OS PESCADORES
O grupo escultórico situa-se num largo urbano de pequena amplitude e com algum declive, sem identificação toponímica, no qual confluem várias vias de tráfego viário.
Trata-se de um grupo escultórico constituído por quatro figuras humanas. As três primeiras apresentam em fila, com os pés assentes no chão, mas a posição dos corpos é oblíqua devido à inclinação para trás conforme movimento de quem puxa com esforço uma corda. A linha diagonal formada pelo corpo é apenas contrariada pelas cabeças, vergadas sobre o peito.
As duas figuras da frente são masculinas, e apresentam-se de tronco nu. A primeira puxa com os dois braços; a segunda limpa com um deles o suor da testa. A última figura da fila é uma mulher, que carrega no braço esquerdo uma criança. Até à altura dos joelhos das figuras, um volume bolboso evoca a espuma e ondas do mar. As expressões faciais não manifestam a força de braços e pernas exigida pela tarefa, apresentando-se sérias e serenas.
O grupo assenta sobre uma base de pedra cuja forma ogival alongada evoca a proa de um barco.
A representação pode dizer-se de inspiração neorrealista ao retratar a dura e penosa realidade de trabalho de um grupo profissional desfavorecido.
O neorrealismo foi uma corrente artística do século XX, de carácter marcadamente social e de denúncia das condições de vida dos trabalhadores.
Outras características que apontam para propósitos neorrealistas são o exagero da inflexibilidade de certas linhas compositivas, isto é, demasiado retas para corpos humanos naturais; e a desproporção de elementos como os pés e mãos, ferramentas de trabalho que importaria acentuar.
Jorge Pé-Curto esclarece a intenção de sublinhar a condição social do pescador: «achei que era o momento histórico para fazer uma peça, não diria neo-realista, mas de inspiração neo-realista»; «há todo um tipo de preocupações dentro da temática dos pescadores que tem a ver com essa questão» (testemunho do escultor Jorge Pé-Curto a 24-1-2005 em LIMA:2006).
O puxar das redes é percecionado por Pé-Curto como «o símbolo da dureza e dramatismo da vida dos pescadores»; e a presença da mulher com a criança «uma homenagem particular àquelas que além do seu trabalho duplo (na faina e no lar) dão ainda sentido à vida, mesmo quando ela convida ao desânimo» (citação em MOTA:1999).
Na superfície lateral da base lê-se uma inscrição em caracteres metálicos: “HOMENAGEM ÀQUELES QUE DESBRAVARAM AS AREIAS DA CAPARICA / OS BRAVOS TRABALHADORES DO MAR OS PESCADORES / CÂMARA MUNICIPAL DE ALMADA / 4/10/1986”
Na base estão também a assinatura e datação: “Pé-Curto 85”.
Relativamente ao estado de conservação, a peça apresenta-se sem vestígios visíveis de degradação à exceção da descoloração esverdeada da patine do bronze. Possui algumas marcas e caracteres grafitados.
HISTÓRIA A obra Os Pescadores assinala o primeiro concurso público realizado em Almada até à data. A Câmara lança o concurso para um monumento de homenagem aos pescadores da Costa da Caparica. Surgem e são apresentados à apreciação do júri dez trabalhos. Elegeu-se, contando-se apenas um voto contra, a maquete apresentada por Jorge Pé-Curto. A verba disponibilizada para este monumento é considerada tendo em conta o arranjo do espaço envolvente, para intervir e melhorar a qualidade urbanística da Costa da Caparica. Os concorrentes podiam, se assim pretendessem, contribuir com ideias. No projecto de enquadramento arquitectónico e paisagístico realizado, Pé-Curto colaborou de forma articulada com os serviços de arquitectura da CMA e nele participaram o arquiteto João Lucas e o desenhador Jorge Machado Dias. A inauguração dá-se cerca de dois anos após a abertura do concurso, evento a que a imprensa denota afluência de várias figuras importantes do concelho (AAVV:1986).
Fotografia: Catarina Pé-Curto
O LOCAL
Aqui podes conhecer melhor a localização da obra e o seu espaço envolvente.
COSTA DA CAPARICA
A obra situa-se na confluência da Avenida 25 de Abril e da Rua Gil Eanes, com a Avenida do Movimento das Forças Armadas, na freguesia da Costa da Caparica.
A cidade da Costa da Caparica situa-se numa faixa de terreno entre a arriba e o mar. Essa faixa de terreno litoral, composta por areias, resulta do recuo do mar. Quando a arriba costeira deixou de estar em contacto com o mar tornou-se fóssil – é uma Arriba Fóssil.
Antes de ser povoada, a paisagem da Costa era dominada por dunas, juncais e charcas de água. As condições de insalubridade e os solos pantanosos, impróprios para a atividade agrícola, inibiram durante muito tempo a ocupação humana deste território.
As origens da povoação da Costa da Caparica remetem para a segunda metade do século XVIII, quando começaram a fixar-se comunidades de pescadores oriundos do Algarve e de Ílhavo, seduzidos pelas boas condições para a pesca com Arte-Xávega: uma longa extensão de praia sem obstáculos naturais. Os locais de origem dos pescadores criaram uma certa rivalidade entre ílhavos e algarvios, que se instalaram em espaços diferenciados: os algarvios ocuparam a zona a sul da atual rua dos Pescadores, enquanto os ílhavos se fixaram na zona norte.
A necessidade de mão de obra utilizada na Arte-Xávega atraiu muitos outros indivíduos de origens desconhecidas que procuravam abrigo e trabalho nas companhas (grupo de pessoas que formam uma equipa de trabalho na pesca) . Eram chamados “barraqueiros”, por habitarem nas barracas utilizadas para guardar as redes e outros apetrechos de pesca. Assim, as companhas por vezes integravam sujeitos marginais, que encontravam meios de sobrevivência num lugar isolado, afastado do controle das autoridades, mas sujeitos à implacável autoridade dos mestres e arrais.
A povoação primitiva era formada por barracas de madeira e estorno, mais tarde por casas de colmo, sendo o primeiro bairro de alvenaria construído em 1884. O acesso era difícil: chegava-se à Costa «pela horrível Trafaria», «num carrinho pela estrada através do pinheiral» (BRANDÃO:1924).
Tratava-se de um território marginal, de população isolada e atrasada relativamente ao resto do concelho. Para este isolamento contribuíam as diferentes origens, hábitos e trajes dos pescadores da Costa, mas também o facto de acolherem nas suas comunidades indivíduos socialmente excluídos.
As primeiras medidas de iniciativa governamental destinadas a transformar a paisagem da Costa e a melhorar as condições de vida das comunidades locais surgem a partir de finais do século XIX. Em 1883 inicia-se a florestação do areal e a abertura de valas de drenagem entre a Trafaria e a Costa, com vista à secagem dos terrenos, ações com impacto ao nível da saúde pública, ao combater os surtos frequentes de paludismo, transmitidas normalmente por mosquitos em terrenos alagadiços.
A paisagem da Costa transforma-se permanentemente, criando condições propícias ao cultivo, muito através da incorporação nas areias estéreis de grandes quantidades de subprodutos da pesca. Isto favoreceu a ocupação por famílias de agricultores que desenvolveram o cultivo de vinhas e hortaliças. Em 1884, na sequência de um incêndio, promovem-se iniciativas que levam à construção do primeiro bairro de habitação com casas em alvenaria, o bairro Costa Pinto, em homenagem ao deputado por Almada Jaime Artur da Costa Pinto que a ele ficou associado.
Foi na década de 1920 que a Costa da Caparica se tornou uma zona balnear para as pessoas de Lisboa. Iniciou-se então uma nova fase do desenvolvimento desta localidade, ao aparecerem as primeiras “casas de banhistas”.
A urbanização da zona norte da povoação obriga os pescadores a mudar-se para a zona sul, onde surgiu o bairro designado por “Rua 15”.
A comunidade piscatória adaptou-se à convivência com os banhistas, por exemplo, alugando-lhes as suas casas (habitando durante o verão nas barracas da pesca) ou passando a trabalhar como banheiros nas praias concessionadas.
Na década de 1930, a iniciativa de sediar na Costa a Junta Central das Casas dos Pescadores, um organismo corporativo do Estado Novo, evidencia a relevância da povoação, que vem a ser elevada a freguesia em 1947. A partir da década de sessenta, integrada nas medidas de fomento da pesca tradicional promovidas pelo Estado Novo, dá-se a construção do Bairro dos Pescadores e a maioria deles passa a dispor de habitação neste bairro.
Em 2004 a Costa torna-se cidade - a única cidade do concelho de Almada, para além da sede do município. Nessa qualidade, foi também a única freguesia do concelho a manter-se inalterada aquando da reorganização administrativa de 2013.
Zona antiga da Costa da Caparica
Fotografia: Francisco Silva
O AUTOR
Aqui podes conhecer melhor o autor desta obra.
JORGE PÉ CURTO / ESCULTOR
Jorge Pé-Curto nasceu em Moura em 1955. Revelando desde cedo forte tendência para as artes plásticas, conhece com dez anos de idade o pintor Hermano Baptista, mentor do Centro Artístico Infantil que funcionava no Castelo de S. Jorge. Aqui, recebe os primeiros ensinamentos e participa no programa Zip Zip. Cursa Escultura na Escola de Artes Decorativas António Arroio como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. Dedicou-se, ao longo da sua carreira, também à pintura, à cerâmica e à gravura. Co-fundador da IMARGEM – Associação de Artistas Plásticos de Almada (projeto que vem a abandonar), é nesta cidade que reside e trabalha desde 1965. Participa desde 1972 em exposições coletivas, expondo individualmente desde 1984. Exerce docência em escolas durante dezassete anos, dedicando-se na atualidade exclusivamente ao trabalho artístico, no seu atelier.
Autor de numerosa escultura pública, da qual se salientam as seguintes peças: Monumento ao Bombeiro (Sines); Um Olhar sobre o Rio, (Seixal); Touro Cindido e o Conquistador (Montemor-o-Novo); Margem Esquerda – Monumento ao Operário (Baixa da Banheira). No concelho de Almada: Evocação a Fernão Mendes Pinto (coautoria de Francisco Bronze, 1985); Monumento à Natureza (coautoria dos seus alunos da Escola Preparatória Conceição e Silva, desaparecida (1988); Busto de José Elias Garcia (1992); A Viagem (1994); Primeiro as Crianças (2001).
No trabalho escultórico, a pedra é o material preferencialmente utilizado, desenvolvendo também técnicas de modelação em terracota.
A sua multifacetada obra estende-se do figurativo ao abstrato. Uma visão geral permite distinguir como características transversais, por exemplo, o minucioso sentido das composições e o máximo aproveitamento da tridimensionalidade e da diferenciação de texturas, cromatismos e reflexibilidade dos materiais.
As suas criações vão desde tratamentos “neorrealistas” de figuras, sejam estas individuais ou coletivas; passando por visões “surrealistas” encontradas em episódios insólitos e alegóricos repletos de criaturas híbridas; até à mistura de ambos estes sentidos.
A PESCA NA COSTA DA CAPARICA
Aqui podes aprender sobre as motivações temáticas do autor para criar esta escultura.
SOB O OLHO NEORREALISTA
Tematicamente, Os Pescadores insere-se no grupo de obras que, sob o impulso do Poder Local Democrático no pós-25 de Abril – ainda que não especificamente erguidos em homenagem à Revolução – estão intimamente associados aos seus pressupostos e intencionalidade.
Fazem parte desta categoria os monumentos à gente humilde, operária e laboriosa até então sem representação no mundo da arte.
Assim, esculturas como esta devolvem dignidade ao povo e contribuem para o reforço e enriquecimento da memória coletiva das comunidades, perpetuando raízes da identidade cultural.
A escultura homenageia a atividade dos pescadores da Costa Caparica. Esta atividade era desenvolvida de acordo com uma técnica de pesca designada Arte-Xávega, modo de pesca que está nas origens da povoação do território da Costa durante a segunda metade do século XVIII e praticada até hoje.
ARTE-XÁVEGA A pesca com Arte-Xávega consiste em largar no mar, descrevendo um semicírculo, uma rede, que seguidamente é puxada para terra através de cordas presas a cada uma das extremidades da rede. O processo de alagem das cordas – o momento ilustrado na escultura – fazia-se puxando para a praia a rede, somente a partir da força de braços e pernas, a cinto, isto é, puxando uma corda presa ao corpo por um cinto a tiracolo, caminhando para trás, de frente para o mar. Uma vez na terra, o saco é sacudido de modo a empurrar o peixe para o fundo, é aberto para retirar o peixe que é seguidamente escolhido, enquanto as cordas e a rede são acondicionadas no barco para o próximo lanço. A organização social das primeiras comunidades locais da Costa baseava-se fortemente nos laços e laborais, sendo as companhas os conjuntos de pescadores e pescadoras que a cada jornada trabalhavam para o mesmo patrão. As companhas eram necessariamente numerosas, envolvendo entre 40 a 50 pessoas (atualmente entre 20 e 25). Tradicionalmente, o trabalho nas companhas iniciava-se na infância acompanhando os pais ou familiares. Os pescadores do sexo masculino integravam as companhas a partir dos 12 anos, antes disso executando tarefas como colher a corda e tirar a água do barco. As mulheres e raparigas trabalham na praia; e quando a alagem era realizada a cinto participavam nessa tarefa ao lado dos homens. Apresenta-se de seguida um poema da autoria de Bulhão Pato em que o autor descreve o momento de chegada da rede à praia: Na praia, vê os pescadores «descoroçoados e tristes». A pesca da sardinha até então tinha sido escassa. Com a chegada à praia do saco de rede cheio, descreve a alegria dos habitantes: «homens, mulheres, rapazes, mudos, immóveis olhos cravados na companha, que lá muito ao largo vinha regressando.»; «Os barcos aproximaram-se de terra. A multidão silenciosa. (…) N’um ai tudo salvo ou tudo perdido! O sacco… a montanha de prata, estava a salvamento na praia [a rede não tinha rebentado]. Raros olhos ficaram enxutos vendo rebentar a alegria d’aqqele povo!»; «As redes voltaram ao mar. A companha bradou a uma só voz: - Avé, Maria puríssima!» (Memórias, Tomo III, Typographia da Academia Real das Sciencias, Lisboa, 1907).
Arte-Xávega
Fotografia: Francisco Silva